O Olhar Paterno
Mas era através de miúdos gestos e de olhares quase clandestinos que nos expressava o seu amor. E esses olhares me ficaram impressos na memória.
Luiz Carlos R. Borges
Muitas vezes, sem que eles percebam, me demoro a olhar silenciosamente os filhos, reunidos ao redor da mesa de jantar e das taças rubras de vinho. E então em mim reconheço o olhar de meu pai.
Ele nunca foi de expansões. Não me lembro que nos abraçasse, a mim e a meus irmãos. Mas era através de miúdos gestos e de olhares quase clandestinos que nos expressava o seu amor. E esses olhares me ficaram impressos na memória.
Havia sido um próspero comerciante em Guaraci, no ramo de sapataria e selaria, e assim pudera comprar bicicletas para meus irmãos mais velhos. Quando adquiri certa idade também me vi no direito de ganhar uma. Em vão: a essa época os negócios já não iam tão bem. Periodicamente meu pai tomava a jardineira até Olímpia, para comprar a matéria prima de que necessitava e a cada viagem eu permanecia na esperança de que, no retorno, no bagageiro, estaria, bem visível e brilhante, a sonhada bicicleta. Numa dessas ocasiões, no final da tarde, corri até o alpendre de nossa casa, em cuja rua frontal passava a jardineira, e ainda uma vez, a última, pois foi quando se desfizeram minhas ilusões, não vi no bagageiro o objeto de meus sonhos: o que vi, junto à janela do veículo, foi o olhar contristado de meu pai, como a pedir desculpas.
Meus pais decidiram que a família se mudaria para Olímpia, para que os filhos pudessem continuar os estudos. Durante algum tempo ele continuou com sua selaria em Guaraci e, nas primeiras férias escolares, fui passar uma semana com ele. Talvez tenha sido o período de maior convívio entre nós dois. Almoçávamos e jantávamos juntos, na casa de minha avó ou no restaurante do seu Farid. Além de afetiva, minha memória dessa semana é também olfativa e gustativa: o aroma do sabonete Carnaval, o sabor jamais igualado das esfirras do Farid. Quando parti, desta vez ele estava do lado de fora da janela da jardineira: tinha um olhar desolado, como se a custo contivesse as lágrimas.
Anos depois, as dificuldades o obrigaram a encerrar as atividades de sua empresa, e rumamos para Campinas, para reiniciar nossas vidas. Um dia ele tomou o trem e se dirigiu até Jaboticabal, na expectativa de receber o pagamento de dívidas de antigos clientes. Na tentativa de ludibriá-lo, eles emitiram um cheque, no entanto pré-datado. Ainda assim meu pai apresentou o cheque à agência bancária e conseguiu receber o valor em dinheiro. Retornou bem no dia de meu aniversário. Tinha um olhar jubiloso e, sob o braço, trazia, embrulhado em jornal, uma lata de doces (a então célebre quatro-em-um; goiabada, figada, pessegada e marmelada), para comemorarmos o aniversário e o êxito de sua viagem.
Passaram-se os anos, muitos anos; os filhos se casaram, vieram os netos; meus pais passaram a residir num pequeno apartamento na rua Barreto Leme. E a meu pai vieram os primeiros sintomas do mal de Alzheimer. Conforme a doença evoluía, minha mãe já não conseguia conter os seus arroubos, a querer obsessivamente descer até a rua, onde o estariam esperando os velhos amigos de Guaraci. Em seu final melancólico, já contando com a ajuda de um casal de acompanhantes, foi perdendo gradualmente os movimentos e alienou-se completamente das coisas e pessoas ao seu redor; já não reconhecia ninguém; suas últimas manifestações foram suscitadas por lembranças de seu tempo de clarinetista da banda de Guaraci: meu irmão mais velho imitava o som do instrumento e ele acompanhava mecanicamente com os pés. Mas o olhar já não existia, apagara-se, fosco e ausente.
Antes desse período, quando ainda mantinha um certo grau de consciência, a cada manhã eu conduzia meu pai até uma casa de idosos, para que pudesse receber cuidados médicos, conviver com pessoas da mesma idade, praticar exercícios e assim conceder algumas horas de descanso para minha mãe.
No final da tarde ia buscá-lo, e era como se eu repetisse a tarefa de apanhar meus filhos na escola. Quando eu chegava, ele já se encontrava no pequeno jardim à frente da casa e, ao me ver e reconhecer, seus olhos readquiriam a antiga alegria, cintilavam. Era, sim, como uma criança que aguardasse ansiosamente a chegada do pai e a saudava com sorrisos e com o brilho dos olhos. Na volta, no carro, ao meu lado, ia lendo em voz alta os letreiros e anúncios publicitários, como um menino recém-alfabetizado.
E era esta a realidade: meu pai se havia tornado meu filho, e eu passara a ser seu pai.
Luiz Carlos R. Borges é pai e avô – e, para sempre, filho.