República!… Voo ousado Do homem feito condor! Raio de aurora inda oculta Que beija a fronte ao Tabor! Deus! Por que enquanto o monte Bebe a luz desse horizonte, Deixas vagar tanta fronte, No vale envolto em negror?!…
Trecho da III parte do poema Pedro Ivo Livro Espumas Flutuantes “Poesias de Castro Alves” Tipografia de Camillo Lellis Masson Bahia 1870 – páginas 62
O vigário João Manoel de Almeida Barbosa, no dia 24 de agosto de 1846, registrou no livro VI, folhas 143, a certidão de batismo de Antônio e, na linha seguinte, a de Francisco, ambos batizados com a sua licença pelo Reverendo Antônio Fernando Nunes. Antônio trazia como padrinho Antônio Benedicto e D. Maria Cândida e Francisco, os padrinhos, Reginaldo Antônio e D. Maria Cândida. Francisco, de seis dias, nascido em 15 de agosto, não era outro senão o filho de Antônio Benedicto de Cerqueira Leite e D. Maria Zelinda da Conceição. Segundo sua certidão de casamento, carregaria o nome de Francisco Glicério de Cerqueira Leite. Seu padrinho de batismo era o compadre de seu pai Reginaldo Antônio de Moraes. Antônio, de 27 dias, nascido em 27 de julho de 1846, não era outro senão o filho de Reginaldo Antônio de Moraes Salles e de D. Antônia Joaquina do Amaral Camargo. Carregando o nome de Antônio Carlos de Moraes Salles, o menino se transformaria em um dos maiores advogados de Campinas. Seu padrinho de batismo era o compadre de seu pai, Antônio Benedicto de Cerqueira Leite.
Como imaginar D. Maria Cândida de Barros, a madrinha dos dois meninos, harmonizando os pensamentos tão diversos e tão diferentes que eram gerados por estes dois personagens. Cento e setenta e seis anos depois sinto-me bastante à vontade para relembrar, com muito orgulho e satisfação esta efeméride que, por sinal, já foi vivida com muita intensidade no ano de 1916, data em que o Centro de Ciências Letras e Artes comemorou o 70º aniversário de nascimento de Francisco Glicério, exatamente quatro meses e três dias após a sua morte, que se deu no Rio de Janeiro em 12 janeiro de 1916. Comentava o Correio Paulistano de 16 de agosto de 1916:
“…Razões de sobra tem o Centro de Ciências Letras e Artes para ficar orgulhoso do êxito de sua comemoração: com ela pagaram Campinas e o Estado de São Paulo uma dívida de honra para com a memória do General Francisco Glycerio, cuja vida, cuja atividade, cujo caráter, cujos altos sentimentos de benemerência e abnegação exigiam uma homenagem condigna, que exaltasse suas virtudes e as apontasse como exemplo a geração atual”
Os festejos começaram no dia 15 de agosto, com uma visita pela manhã ao túmulo de Glicério. Uma comitiva partiu do largo da catedral às oito horas da manhã com a banda da Força Pública, sob as ordens do Alferes Salvador Chiarelli e diversas autoridades. Alunos do Liceu de Artes e Ofícios, do Externato São João, alunos da escola do Fundão, alunos do segundo Grupo Escolar, alunos do Ginásio do Estado e diversas outras entidades de ensino, seguiram pelas (atuais) Francisco Glicério, Barreto Leme, Barão de Jaguara, Ferreira Penteado, José Paulino e Avenida do Fundão, hoje conhecida como Avenida da Saudade, até a porta da necrópole, onde a polícia vetou a entrada do grande número de populares.
O túmulo de Francisco Glicério se encontrava completamente coberto de flores naturais, onde o prefeito municipal, Heitor Penteado, pronunciou um discurso em que se dizia guiado pelo Centro de Ciências, Letras e Artes e seus fins altamente nobres para reunir e incentivar o civismo e o patriotismo em nossa cidade. Acrescentava o prefeito que a solenidade teria uma dupla significação, de um lado, a dor pelo desaparecimento do amigo, ilustre, generoso e bom e, por outro lado, a solidariedade do povo com o princípio ideal que, em vida, o eminente campineiro sempre encarnou.
O Prefeito Heitor Penteado, relembrou com propriedade a caminhada de Francisco Glicério na construção da República. Em seguida a banda da Força Pública executou uma peça de seu repertório. Usou também a palavra o aluno do Colégio São Benedito, Araripe Rodrigues que encerrou esta parte da solenidade. Às 20 horas, realizou-se no salão nobre do Centro de Ciências Letras e Artes, a Sessão Magna. Com abertura do presidente, dr. Carlos Stevenson, a palavra foi entregue ao Presidente da Câmara dos Deputados, dr. Antônio Lobo que, em seu discurso, menciona uma carta de próprio punho de Glicério a ele endereçada. A carta era datada de 17 de julho de 1890 e se referia a momentos delicados e tristes da vida de Glicério:
“…Pede ao Deus dos católicos que me auxilie, só vejo em torno de mim o dever de ser forte, a necessidade de ser puro e os perigos da minha situação.
Quando parti disse-te que te mandaria 30:000$000 para pagares aqueles três compromissos que envolvem a minha honra e o meu nome, no suposto de que viria receber essa soma de meus irmãos, pela venda do meu quinhão na fazenda de Jaú, pois supunha poder liquidar, pelo menos, 40 contos. Deram-me 20 contos, sendo 12 já, e 8 depois! Que pancada levei na cabeça com essa triste nova, deves imaginar. Equilibrei-me, o mais que pude, para não cair fulminado, e não dei sequer a perceber que assim ficava exposto a um desastre moral que me pode ser fatal.
Disse ao Jorge que te mandasse os 12 contos, pague com eles, Rafael Sampaio & CO, 8.602$670, pela liquidação de D. Gertrudes de Arruda Camargo e o restante use na reforma da letra endossada pelo Octaviano, no Banco Provincial. Quanto ao saldo das prestações de D. Isabel e Domingos da Costa Neto, serão pagas do seguinte modo: com os 8 contos que pedirás ao Jorge e com o produto da venda de minha casa, para o que te mandarei procuração minha e de minha mulher do Rio de Janeiro.
Arranja-me isso, pelo amor de Deus, de modo que meu nome seja salvo do naufrágio.
Além disso, tenho outras dívidas, sendo a que mais me tortura é a de Santos, Irmão & Nogueira, a quem não posso e não devo prejudicar, sob pena de ser um falso amigo.
Calculo que os serviços do escritório darão 40 contos, sem incluir Fiorita e Tavolara, mas isso é liquidação demorada, portanto, tudo depende das tuas diligências, da tua dedicação a mim.
Se estes meios falharem, temo que a minha honra será o pasto apetecido dos meus cruéis inimigos e a minha retirada do governo e da política, a consequência forçada do desastre. Então minha visita a Campinas passará a ser uma eterna despedida, no seio dos meus companheiros, no teatro das minhas glórias. Bem vês quanto isso é horrível, menos para mim do que mesmo para a salvação e o ressurgimento de minha terra. Não sei o que pensava quando, a custo, desprendi-me de vocês, entretanto, eu nada suspeitava. Meus irmãos apresentaram-me um cálculo exato, contra o qual nada tenho que reclamar, mas a questão é que eu devia à firma, a parte do capital, que retirei aos poucos, e a sociedade tem passivo considerável. Se pudesse esperar a colheita de 91, então estaria salvo, mas não posso, pelas circunstâncias que exponho.
Eis tudo, tudo quanto me acontece, depois que cheguei ao fim da minha jornada política. Aqui estou, sem poder me abrir com viva alma. Quis chamar-te, mas verifiquei que eu não poderia conter-me, sem disparar no mais indiscreto desabafo. Esse encontro seria até um vexame para mim, que preciso manter calma, reflexão e firmeza inabalável.
Não devo considerar-me infeliz, porque o culpado fui eu. Sou apenas um patriota sem dinheiro com a responsabilidade do governo e do futuro de S. Paulo. Há uma coisa que me tortura o coração e a consciência, fiz a República, a custa do dinheiro alheio prejudicando meus credores. Este espinho há de levar-me ao túmulo, se eu não puder salvar-me agora, a fim de trabalhar e pagar as minhas dívidas.
Vês quanto deves fazer por mim. Confio a direção dos meus negócios para você e parto para o Rio, para àquele inferno, levando a alma em pedaços. Olha: salva-me, e fica desde já pago do teu serviço, recebendo este conselho: nunca sejas chefe político. Esta carta começada ontem concluo agora, às 5 horas da tarde de 18, e daqui a pouco vou ao banquete político que me dão. E vou mostrar-me risonho, e vou fazer discursos! Adeus.Dá-me um abraço e que isto me anime. Teu amigo, Glicério”
Este episódio não terminaria assim, pois um amigo comum de Glicério e Antônio Lobo, morador de Santos, diante de uma acusação que chegara ao seu conhecimento, a de que Glicério não saldara uma dívida de quatro contos de réis, imediatamente chama Antônio Lobo que, sem poder mentir e bastante envergonhado, confirma que Glicério não tinha mais atividade profissional o que dificultava sua vida em vários sentidos. O perfeito cavalheiro e leal amigo de Santos, então tomou a seguinte decisão:
“… Pois, eu não desejo que se fale de Glicério; quero que seu nome continue tão limpo e respeitado como é e tem sido até hoje.” Logo no outro dia, este amigo, providência 36 contos de réis para saldar as contas de Glicério na praça de Campinas, sacados do Banco União de São Paulo, empresa em que era sócio com Bento Quirino e José Paulino Nogueira e proíbe Antônio Lobo, de revelar sua identidade ou a origem dos recursos. O tempo não consegue torná-lo anônimo: Antônio Carlos da Silva Telles, nome que Campinas admira por esta e outas atitudes.
Hoje, diante de tantas dificuldades vividas pelo Centro de Ciências, Letras e Artes que, sem esmorecer insiste em sobreviver, relembramos o nascimento de Francisco Glicério, não com as glórias do passado, dias em que civismo era valorizar nossos heróis, era transferir valores para uma geração, era a identificação com a república libertária, mas com este singelo artigo em tempos amargos, em uma sociedade que ainda não construiu os valores éticos do respeito e tolerância, base do espírito democrático.
Genaro Campoy Scriptore Administrador de Empresas, Curador do Museu Campos Salles, Conselheiro Fiscal do Centro de Ciências Letras e Artes