Luiz Carlos R. Borges
Oportuníssima a matéria publicada no Correio Popular, Caderno Cultura, em sua edição de 16 de março, sob o título de “A Contemporaneidade da Música Clássica” e assinada por Aline Guevara. A matéria focaliza a composição de Denise Garcia, “Homenagem a Kilkerry”, incluída dias antes (11) no concerto presencial da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. E é gratificante verificar que uma obra literária tenha sido motivo para a composição de uma peça musical erudita, como é o caso. A poesia do baiano Pedro Kilkerry, como esclarece a notícia, deslumbrou a compositora ainda em seus anos de aprendizado e, já no curso de sua atividade criadora, sempre figurou em seus projetos musicais tecer uma homenagem ao poeta, o que viria a aflorar naquela composição executada no concerto.
Como ainda informa a autora do texto, Kilkerry, morto precocemente (1885-1917), não chegou a publicar nenhum livro em vida, e sua obra esparsa só viria a ser redescoberta por críticos vanguardistas já na segunda metade do século passado.
Coube efetivamente aos escritores vinculados à Poesia Concreta a tarefa de promover essa redescoberta, especialmente Augusto de Campos, que já na década de 1960 vinha publicando artigos na imprensa a respeito da obra de Kilkerry; posteriormente seus estudos e pesquisas foram reunidos em livro, “ReVisão de Kilkerry”, cuja segunda edição, revista e ampliada, veio a lume em 1985, através da Editora Brasiliense, contendo toda a obra do poeta que se conseguiu recolher e ainda fotos, reproduções de manuscritos e de fac-símiles de poemas divulgados pela imprensa. Dele, entre outras observações, disse Augusto de Campos: “pelo muito que deixou (non multa sed multum), merece ser considerado, como Sousândrade, um precursor da revolução literária que se iria desencadear, em sua plenitude, com o Movimento Modernista”. Lembre-se: Joaquim de Sousa Andrade, que adotou o nome literário de Sousândrade, foi poeta maranhense do século dezenove, igualmente dotado, em pleno período romântico de nossa literatura, de linguagem original e inovadora.
Logo após a morte de Kilkerry, como ainda informa Augusto, amigos e companheiros seus de Salvador, como Jackson de Figueiredo e Carlos Chiacchio, cuidaram de preservar o seu legado, em trabalhos como “Humilhados e Luminosos”, de autoria do primeiro e datado de 1921.
Aqui entra o Centro de Ciências, Letras e Artes, que já no ano de 1920, através de sua Revista, chamava a atenção para a figura e a obra de Pedro Kilkerry.
Não é de surpreender. A Revista do CCLA, que se começou a publicar em 1902, ou seja no ano seguinte à fundação da entidade, e que recentemente alcançou o seu exemplar de nº 72, desde os seus primórdios se notabilizou por repercutir, como autêntico repositório, as ideias e as tendências que marcaram esse período de mais de cem anos, seja no plano cultural, seja no científico, no histórico, no artístico – contribuindo, em especial, para a articulação de causas civilizatórias, como foi o seu posicionamento em prol dos povos indígenas e contra a devastação das matas.
Não foi diferente na área literária. Quanto ao episódio Pedro Kilkerry, isso ocorreu no período em que o jornalista Alberto Faria atuou como Diretor da Revista (também assumiu a presidência da entidade no biênio 1917-1918). Entre 1915 e 1920, a revista acolheu inúmeras colaborações advindas de escritores de São Paulo e, sobretudo, do Rio de Janeiro, inclusive de participantes de suas Academias literárias (o próprio Faria viria a ser eleito para a ABL). Nomes como os de João Ribeiro, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira começaram a frequentar suas páginas. E, entre eles, aquele mesmo Jackson de Figueiredo, através de artigo em que reverenciou a memória do amigo. Extrai-se, a respeito, o que foi por nós escrito no livro comemorativo dos 101 anos de fundação do CCLA:
“Aquela vocação do Centro para a abertura de veredas voltaria a se manifestar em 1920, quando abre as páginas de sua Revista para um trabalho de Jackson de Figueiredo em torno de um obscuro poeta baiano, Pedro Kilkerry, falecido poucos anos antes (1917) e cultor de uma vertente simbolista ainda mais à margem do próprio simbolismo, o qual só muitas décadas depois seria revisto e devidamente valorizado, por versos como estes:
Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme…
É, nunca estrela eu te supus.
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!”.
O belo e instigante repertório musical de Denise Garcia se encontra disponível na internet (YouTube), inclusive a “Homenagem a Kilkerry”, gravada em áudio pela mesma OSMC enquanto ainda regida pelo maestro Victor Hugo Toro. Nessa peça a artista consegue captar o equivalente sonoro a um poema, sem título, que se inicia com o verso “a esses sons longínquos estremeço” e termina com estes: “… caem lentamente / quentes e rubras gotas, uma a uma / no mar, sobre uma velha casa submarina”. Não por acaso, o maestro Toro, em sua introdução, destaca que a parte final da peça contém uma citação da composição de Debussy, “A Catedral Submersa”.
Luiz Carlos R. Borges é membro da Academia Campinense de Letras e secretário geral do CCLA