Fac-símile da Divina Comédia, traduzida por José Pedro Xavier Pinheiro

                                                        Luiz Carlos R. Borges

(Setecentos anos de morte de Dante Alighieri, nascido em 1265, em Florença, e falecido em 14 de setembro de 1321, em Ravenna).

O texto que se segue, ainda a propósito dos setecentos anos da morte de Dante Alighieri, visa a um objetivo bem delimitado, voltado para a repercussão da obra de Dante no Brasil. Mais especificamente, o tema será a proeza literária do baiano José Pedro Xavier Pinheiro.

História que se inicia com Machado de Assis e sua atividade como tradutor. A esse propósito, há pouco tempo folheando o romance de Victor Hugo, Os Trabalhadores do Mar, na edição de 1971 da Editora Abril em sua coleção Os imortais da Literatura Universal, verifiquei, não sem certa surpresa, que a tradução coube exatamente a Machado.

Dele, também soube haver traduzido um dos cantos da Commedia, no caso, o Canto XXV, do Inferno. Pois, tendo sido publicada, em 1874, no jornal Globo, essa tradução veio a merecer imediata admiração por parte de Xavier Pinheiro.

Nascido em 1822, desde cedo esse baiano de Salvador precisou exercer uma profissão que lhe assegurasse os meios de subsistência a partir do momento em que os negócios de seu pai fracassaram; exerceu funções de professor, nela se destacando de forma a ter merecido o apoio de fazendeiros e amigos de seu pai para o fim de ampliar sua formação e seus conhecimentos. Em certo momento, sentiu a necessidade de se transferir para um centro urbano mais favorável a seus projetos, quando então se radicou no Rio de Janeiro. Na capital do Império atuou no jornalismo e mais tarde conseguiu um cargo público; ali encontrou condições propícias a seu aperfeiçoamento cultural, inclusive se relacionando com os intelectuais que, nascidos no Rio ou provenientes de todas as partes do País, constituíam o próprio núcleo da criação e da produção literária nacional.

Foi quando, ao elogiar pessoalmente Machado de Assis por sua tradução daquele Canto da Divina Comédia, este, por sua vez, o estimulou a também ingressar na grandiosa tarefa de traduzir Dante. Xavier Pinheiro aceitou o desafio e, pelos sete anos seguintes, trabalhou intensamente, até mesmo com sacrifício da própria saúde, até sua morte, em 1882, na tradução integral da obra-prima dantesca.

Não teve a felicidade, no entanto, de ver publicado em livro o fruto do exaustivo trabalho a que por tanto tempo se dedicou; não só: após sua morte, seu filho ainda teve de pelejar por largos anos, em verdadeira odisseia,  até finalmente obter com que o livro fosse publicado, já decorridos mais de vinte anos desde o falecimento do pai.

São os três volumes dessa obra, só concluída em 1907, que figuram em minhas estantes, presente do saudoso amigo e confrade da Academia Campinense de Letras, Marino Falcão Lopes, e de cujo prefácio, de autoria do filho do Tradutor, F. A. Xavier Pinheiro, colhi as informações que ora integram esse texto.

É em homenagem, portanto, ao trabalho solitário e abnegado de José Pedro Xavier Pinheiro e ao precioso legado com que ele nos premiou que é feito o presente registro.

Uma das páginas mais primorosas da obra-prima de Dante é, reconhecidamente, aquela em que relatado o drama do casal de amantes adúlteros, Paolo e Francesca (Canto V do Inferno – círculo infernal onde padecem os luxuriosos). Nesse episódio o poeta demonstra a mesma e implacável severidade com que censura as diversas linhagens de pecadores (aí incluindo seu próprio mestre Bruneto Latini; o pai de seu dileto amigo Guido Cavalcanti; e até mesmo outros poetas, como o trovador Bertran de Born – a propósito, o castigo infernal infligido a este é sutilmente sugerido em meu romance Crônica de Bernartz & Bertran). Aqui, no entanto, ele confessadamente se condói diante do destino trágico dos amantes, ao ponto de, no final, literalmente tombar ao chão: “e caddì como corpo morto caddi” (e caí, como morto corpo cai). Outro verso lapidar vem logo antes: “quel giorno più non vi leggemo avante” (os amantes se dedicavam à leitura até serem irresistivelmente atraídos e se beijarem: daí, “aquele dia não mais continuamos a ler”).

Portanto, nada mais apropriado do que encerrar este texto com a transcrição (precedida dos originais) dos versos finais desse Canto V, na tradução de Xavier Pinheiro (mantida a grafia da época):

“La bocca mi baciò tutto tremante.

Galeotto fu il libro e chi lo scrisse:

quel giorno più non vi leggiamo avante”.

mentre che l’uno spirto questo disse,

l’altro piangea sì che di pietade

io venni men cosi com’io morisse:

e caddi como corpo morto caddi.

“A boca me beijou todo tremante,

De Galeotto fez o autor e o escripto.

Em ler não fomos n’esse dia avante”

Em quanto a historia triste um tinha dito,

Tanto carpia o outro, que eu, absorto,

Em piedade, senti lethal conflito,

E tombei, como tomba corpo morto.

O autor é Secretário Geral do CCLA e diretor de seu Departamento de Literatura; membro da Academia Campinense de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas