DUZENTOS ANOS DE CHARLES BAUDELAIRE

Neste ano comemora-se o bicentenário do escritor francês CHARLES BAUDELAIRE, nascido em Paris em 09 de abril de 1821.

Autor de uma obra literária que compreende “Pequenos Poemas em Prosa ou o Spleen de Paris”; traduções como as desenvolvidas em torno da obra de Edgard Allan Poe; crônicas sobre os vícios e costumes daqueles meados do século dezenove; reflexões sobre estética, literatura, artes plásticas e visuais (“Paraísos Artificiais”, “Meu Coração Desnudado”, “O Pintor da Vida Moderna”, “Obra e Vida de Delacroix”), Baudelaire notabilizou-se, sobretudo, por seu livro de poemas intitulado “Fleurs du Mal” (Flores do Mal).

Publicado em 1857, naquele mesmo ano algumas das peças integrantes do livro produziram imediato escândalo junto aos moralistas de plantão. A partir de um artigo divulgado pelo jornal “Le Figaro”, instaurou-se uma investigação judicial contra o poeta e contra seus editores, Poulet-Malassis e De Broise, por “ofensa à moral religiosa, à moral pública e aos bons costumes”. Ao final do processo o poeta e seus editores foram condenados em penalidades de multa e o livro teve de sofrer a amputação de seis dos poemas que o integravam. Sua reabilitação, no âmbito judicial, sobreviria apenas em meados do século vinte.

Baudelaire faleceu em 31 agosto de 1867. Seu nome se inscreveria no panteão dos maiores poetas de todos os tempos e como introdutor da modernidade na arte poética.

Ao longo dos anos tive oportunidade de escrever por várias vezes a seu respeito e de sua obra. Ainda na década de 1980, a Revista então mantida pela Associação Paulista de Magistrados (APAMAGIS) divulgou um texto intitulado “Poetas no Banco dos Réus” (onde também abordado o processo judicial enfrentado por Paul Verlaine depois de haver atirado contra Arthur Rimbaud); no suplemento literário do jornal Correio Popular, de Campinas, “Domingo Cultura”, edição de 27/06/1982, publicou-se “Maldito Baudelaire” (“maldito” foi o epíteto com que o mesmo Verlaine definiu  companheiros seus na atividade poética, como Baudelaire, Rimbaud e outros: “Les Poètes Maudits”).

Já nos anos mais recentes, o Caderno C do Correio Popular, acolheu dois outros artigos meus: “O Poeta no Meio da Rua” e “O Salmo de Baudelaire”.

Aquele texto de 1982, ora revisto, e mais outro, inédito, vão a seguir, nossa modesta homenagem ao grande poeta francês em seu bicentenário.

MALDITO BAUDELAIRE

O jornal Correio Popular, no suplemento “Domingo Mulher” (antecessor do “Domingo Cultura”, coordenado por Eustáquio Gomes e Roberto Goto), em sua edição de 27/06/1982, publicava um texto de minha autoria, intitulado “Maldito Baudelaire”, contendo a tradução de um dos poemas mais “amaldiçoados” do livro “Le Fleurs du Mal”, intitulado “A celle qui est trop gaie”, um dos seis que foram condenados à supressão pelas autoridades judiciárias que julgaram ação movida contra Charles Baudelaire e seus editores.

Destaquei, no breve ensaio que precede a tradução do poema, “sua estrutura, cujos versos iniciais sugerem uma típica concepção romântica da mulher e da natureza, mas cujo desenvolvimento logo se encaminha para outro sentido, rumo a um desfecho pleno de erotismo e perversão, caracteristicamente baudelairiano”. É como, ora acrescento, se o poeta, integrante, ao menos cronologicamente, do período romântico da poesia francesa, esboçasse os primeiros versos segundo os cânones da Escola, para, num crescendo, se empenhar em os infringir, transgredir e implodir, culminando no magnífico verso final: “T’infuser mon vénin, ma soeur!”. Registro, aqui, aquela tradução:





Teu rosto, teu gesto preclaro

São belos como uma paisagem;

O riso brinca em tua imagem

Qual fresca brisa no céu claro.

O passante detém os passos

Se o roças com leviandade,

Deslumbrado ante a claridade

De teus ombros e de teus braços.

Pois as resplandecentes cores

Que com tuas vestes suscitas

Despertam na alma dos artistas

As imagens de um balé de flores.

Loucos trajes são o estandarte

De tua alma, rútilo ornato;

Louca, que me pões, insensato,

A amar tanto como odiar-te.

Certa vez, num jardim perfeito,

Indo a arrastar minha apatia,

Vim a sentir, com ironia,

O sol dilacerar meu peito.

A primavera em esplendor

Tanto humilhou minha tristeza

Que a insolência da natureza

Eu castiguei sobre uma flor.

Assim, na noite, sem alarde,

Hora de volúpias e agouros,

Para os teus íntimos tesouros

Vou me arrastar como um covarde.

E punir-te a carne radiosa,

Maltratar teu seio vencido,

Abrir em teu flanco aturdido

Uma ferida dolorosa;

E, doce vertigem malsã,

Através estes lábios úmidos,

Mais estuantes e mais túmidos,

Injetar meu veneno, irmã!

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L’HÉAUTONTIMÔROUMÉNOS

                            O título deste artigo corresponde ao de um poema de Charles Baudelaire, incluído em seu livro “Les Fleurs du Mal” (As Flores do Mal), publicado em 1857. A expressão é originária do grego clássico; deixei de optar, em meu tempo de colégio no Culto à Ciência, pelo aprendizado do idioma grego, então opcional entre as disciplinas do curso clássico; porém, segundo informam algumas edições do livro de Baudelaire, a expressão se traduz como “o carrasco de si mesmo”, ou “aquele que se aflige a si próprio”.

                            Trata-se de um poema caracteristicamente baudelairiano, que se inicia com os versos “Je te frapperai sans colère / et sans haine – comme um boucher!” (Eu te baterei sem cólera e sem ódio – como um açougueiro!), e se encerra com estes, que concretizam a definição, autodestrutiva, anunciada no título:

Je suis la plaie et le couteau!

Je suis le soufflet et la joue!

Je suis les membres et la roue,

et la victime et le bourreau!

Je suis de mon coeur le vampire

– Un de ces grands abandonnés

Au rire éternel condamnés

Et qui ne peuvent plus sourire!

Em tosca tradução: Eu sou a chaga e a faca! Eu sou o tapa e a cara! Eu sou os membros e a roda (o instrumento de suplício que esticava braços e pernas até rompê-los), e a vítima e o carrasco! Eu sou o vampiro de meu coração – um desses grandes abandonados, condenados ao riso eterno e que não podem mais sorrir!

                            Na realidade, o título foi tomado de empréstimo por Baudelaire a uma comédia latina de Terêncio (190-159 a.C).

                            Publius Terentius Afer foi uma figura peculiar da literatura romana da Antiguidade. Originário do norte da África, tendo nascido em Cartago, foi conduzido como escravo a Roma e nessa condição permaneceu até ser liberto por seu senhor, o senador Terêncio Lucano, do qual herdou o nome e a instrução erudita que lhe foi ministrada. A qual lhe permitiu aventurar-se, com sucesso, na escritura de peças teatrais, entre as quais aquela de nome “Heautontimorumenos”.

                            Algumas frases extraídas das obras de Terêncio se perenizaram e até mesmo se popularizaram, como esta: “quot homines, tot sententiae”, de que se originou a expressão proverbial “Cada cabeça, cada sentença”. Ou esta outra, formulada exatamente na comédia em questão: “Homo sum; humani nil a me alienum puto”, de que derivou, entre nós, a afirmação de que “nada do que é humano me é estranho”.

                            Trata-se de expressão que parece nascida do repertório psicanalítico, mas que em verdade foi utilizada por Terêncio num contexto mais prosaico, em que um pai procura justificar sua conduta mais severa adotada em relação a um filho. E que, por sua vez, parece ecoar dito semelhante, formulado já em tom solene pelo grego Sófocles (século V a.C) e incluído na abertura do primeiro Coro de sua “Antígona”: “Muitas são as coisas estranhas; nada, porém, há de mais estranho que o homem”.

                            Esse trecho da tragédia de Sófocles  mereceu de Martim Heidegger uma profunda análise em sua “Introdução à Metafísica” (1953), em que o filósofo alemão, como de hábito, mergulha na busca do sentido primordial que cada palavra dessa peça deveria assumir na língua grega original, vislumbrando, por exemplo, na frase inaugural do coro (e na noção de “estranheza” nele encerrada), uma concepção do homem “pelos limites supremos e pelos abismos mais surpreendentes de seu ser”, acrescentando que “tal ser só se revela e se abre a um projeto poético-pensante”, como a assinalar que através da filosofia e da poesia é que o ser humano poderá se desvelar em toda a sua ilimitada e “estranha” dimensão.

                            Arrematando esse breve itinerário, a expressão “nada do que é humano me é estranho” assinala como que um emblema, um estandarte da poética do próprio Baudelaire, que em sua tematização do humano não recua diante dos aspectos mais extremados, radicais e obscuros, perscrutando, inclusive em si próprio, aquilo que a essência humana contém de mais sublime e de mais sórdido, sondando-o nas experiências de êxtase e nas provações dos abismos.

Luiz Carlos R. Borges, Secretário Geral do CCLA

e responsável por seu Departamento de Literatura



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O CCLA - Centro de Ciências, Letras e Artes é uma entidade cultural particular e sem fins lucrativos fundada em 31 de outubro de 1901, na cidade de Campinas/SP, por um grupo de cientistas, artistas e intelectuais que decidiram criar uma instituição em que se pudessem reunir para o estudo e a produção de atividades científicas e artísticas.


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