Dante Alighieri e o Visconde de Inhomirim
Francisco de Sales Torres Homem, Visconde de Inhomirim, ilumina nosso intelecto com um estudo literário sobre Dante Alighieri que, nos dias de hoje, poderia ser tema para um tese universitária.

Visconde de Inhomirim


Novamente o acaso, cruzando meu caminho. Durante minhas pesquisas na busca de subsídios para uma obra pessoal, encontro a figura do Visconde de Inhomirim, Francisco de Sales Torres Homem, carioca, escritor, político, formado em medicina e direito, diplomata do segundo império, opositor ferrenho da Regência Una do Padre Diogo Feijó, cujas críticas transbordavam nos jornais da imprensa do segundo império.
Discípulo de Evaristo da Veiga, Torres Homem, formado na Universidade de Paris, Sorbonne, França, dominava o francês, inglês, latim e português com maestria. Filho de um padre de vida desregrada, chamado Apolinário Torres Homem e de Maria Patrícia, mulher negra alforriada, que no Rio de Janeiro, Largo do Rosário, hoje Praça Antonio Prado, exercia a profissão de quitandeira. Nesta região, era conhecida como Maria “Você me mata”.
Francisco Sales Torres Homem, o primeiro negro a defender a causa abolicionista, ilumina o intelecto do leitor do jornal O Despertador: Diário Comercial, Político, Científico e Literário do Rio de Janeiro, por ele dirigido durante os anos de 1838 a 1841, com um estudo literário sobre Dante Alighieri. Esta publicação do dia 6 de dezembro de 1839, edição de número 500, páginas 1 e 2, é de uma extraordinária riqueza de detalhes que nos dias de hoje poderia facilmente ser tema para uma tese universitária.
Conta Torres Homem que, no século 14, a língua e a poesia italiana não existiam ainda e que foi fertilizada pelas obras de três grandes renascentistas: Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Giovanni Bocaccio.
Para Torres Homem, Dante Alighieri é a estrela principal entre os três. Com base na crítica do seu professor do Curso de Literatura Francesa, (Cours de littérature Française), Abel-François Villemain, e por algumas ideias que teria retirado da Biblioteca Acadêmica da Universidade de Paris.
Torres Homem, compara Dante Alighieri a Homero, figuras que prestaram serviços significativos ao idioma de seus países. Dante teria encontrado a língua italiana nas mesmas condições que Homero encontrara o grego popular. Uma língua informe, falada em dialetos que variava de província a província, de vila a vila, o que descaracterizava o idioma pátrio. Para unifica-lo era preciso que aparecesse um escritor que tivesse a habilidade de sujeitá-lo ao seu talento, fazendo brilhar, como um meteoro, a sua poesia e sua escrita, criando um espetáculo literário que iluminasse o mundo todo, assim como fez Homero.
Segundo Torres Homem, Dante Alighieri foi para a Itália, o genial escritor e literato que em uma terra inculta, realizou o primeiro trabalho no qual o idioma se sujeita ao estilo poético, criativo e engenhoso do autor. Adaptou-o a assuntos vários, tornou-o flexível a todas as nuances de sentimentos, buscando nos diversos dialetos falados na península itálica as locuções mais felizes e as palavras mais significativas incorporando-as em sua obra, assim como a abelha que do pólen de várias flores cria o suco dulcíssimo do mel.
Esse poeta dedicou seus primeiros versos a uma bela jovem, chamada Beatriz que, em Florença, viu a morte chegar prematuramente, plantando na mente laboriosa do escritor, sentimentos de um amor ardente e permanente, cheios de sensibilidade doce e terna, carregados do perfume da mais suave melancolia.
Conta-nos o Visconde que certo dia, no ano 1304, visitou Florença o Cardeal bispo de Óstia-Velletrio, Niccollò Albertino, filho do conde de Prato, também chamado como Niccolò da Prato, ou Nikolaus von Prato. Durante esta visita divulgou-se, ao som de trombetas, que aqueles que desejassem receber notícias do outro mundo, do mundo invisível dos mortos, deveriam vir à ponte “Alle Carraia”, a segunda ponte construída sobre o Rio Arno, feita de pedra e madeira e que ligava Florença ao interior da Itália. Na Ponte foi levantado um teatro onde artistas usando máscaras demoníacas, representavam os suplícios do inferno, precipitando-se em chamas, interpretando condenados rangendo dentes e desferindo gritos horríveis sobre a plateia atônita. Em um determinado momento, a Ponte não suportou o peso da multidão e dos artistas e desmoronou. A curiosidade com as coisas do outro mundo, agora, se tornava realidade para as pobres vítimas do evento, vitimadas de forma mortal.
Torres Homem enfatiza que foram muitos os estudiosos de Dante Alighieri que referenciam este evento como a inspiração das primeiras ideias da “Divina Comédia”. O século 14, era um tempo em que a religião tudo influenciava – superstições, o pecado, o medo e até mesmo a submissão clerical devotada por fiéis católicos – o que abria, de certa forma, um caminho para a poesia e para a música, recheadas de curiosidade sobre a morte e a vida pós-morte. O povo julgava Dante Alighieri um viajante das regiões infernais, e dos meandros do purgatório, colecionador de mapas, itinerários e trilhas geográficas desses lugares desconhecidos.
Em certa ocasião, conta-nos o Visconde, que em uma rua de Verona uma mulher do povo mostrou-o à sua vizinha nestes termos: – “Vedes aquele homem, que vai ao inferno quando quer, e vem contar o que viu?”. Ao que outra respondeu que “não era difícil reconhecê-lo pela sua barba meio queimada, e pela tez enegrecida pelo fogo e o fumo”.
As disputas ocasionadas pelo clero e pelo Sacro Império Romano-Germânico geravam uma época de confusão e depressão e deram a Dante Alighieri uma rica fonte de inspiração, com episódios vários, até mesmo incluindo o próprio autor. Dante relata com paixão e maestria opiniões, costumes, conflitos de paixões e de acontecimentos.
A obra de Dante Alighieri apresenta um itinerário poético de três mundos, marcado por viagens através do Inferno, Purgatório e Paraíso. O viajante desce pelos dez recintos do inferno como se fosse, figurativamente, um cone com sua base circular voltada para cima, cuja ponta coincide com o centro da terra, local onde repousa o corpo de Lúcifer. Depois de passar pelo centro da terra, segue em tropa pelo hemisfério austral, até uma ilha onde se acha o Purgatório, montanha feita em cone truncado, cone com ponta achatada em formato cônico, onde se situa o Paraíso. Esta referida montanha com sete diferentes alturas, ou planos, da base até o cume onde termina o Purgatório e começa o Paraíso. Dante, depois de saudar a morada de nossos primeiros pais, continua sua jornada elevando-se até a morada de Ptolomeu na décima esfera, onde a divindade reside. Dia após dia, Dante nos proporciona um relato fiel do que viu e ouviu no caminho de suas aventuras.
Continua Torres Homem relatando que, no começo do canto do Paraíso, com seus arroubos de entusiasmo e suas frequentes invocações, as musas são carregadas de ingenuidade encantadora. Apavorado com a enorme tarefa que o força a subir o cume dobrado de duas colinas, pede a Apolo que tome conta de sua alma. Que faça cair sobre ele e sua missão os sons provocados pela sua lira que venceu a flauta do fauno Marsias, causador de tão desgraçado desafio musical entre ele e Apolo. A derrota do fauno trouxe como consequência o castigo terrível de ser amarrado a um tronco de árvore e esfolado vivo. O estudo do Visconde menciona que no Poema do inferno são elevados ao mais alto tom o negro e o terrível. Já no Purgatório pode se respirar a melancolia piedosa da penitência resignada, com ar sombrio, como um doce crepúsculo em perspectiva. No canto do Paraíso, a calma, a serenidade, o êxtase, o sublime da religião. Chama a atenção Torres Homem que os críticos são unânimes em afirmar, que a inscrição na porta do Inferno pode ser traduzida como a transcendência do terror:
“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!”
(Renunciai a toda esperança, vós que entrais) – Inferno Canto III
E ao passar por esta porta infernal, é impossível deixar de se escutar suspiros, soluços profundos, queixumes atrozes que retumbam nos dias e nas noites.
O patético e o terrível são extremamente aplicados no canto em que Dante narra a horrorosa história do conde Ugolino, que perece de fome com seus filhos na torre de Pisa. Com certeza este é um momento na obra que excede a qualquer obra produzida, impossível de ser lida sem o sentimento de piedade e terror, frisa Torres Homem.
E continua sua análise, com bastante propriedade:
“Que espetáculo oferecem esses meninos que, em seus sonhos, pedem pão com soluços e gritos dolorosos; e que, depois de acordados, imploram a compaixão de seu pai, também esfaimado, e passam dois dias a olhar uns para os outros com uma dor muda.” Inferno Canto XXXIII
O Visconde, em seu estudo, não perde um detalhe e traz em seus comentários que na passagem pelo Inferno Dante mostra seu espírito de sátira, de uma sátira violenta, atroz que, através das palavras enterra sua lâmina envenenada nos mais profundos recônditos da alma do leitor. Seria uma justificativa para tal espírito os infortúnios sofridos por Dante Alighieri? Seria este o gênio natural do poeta, que transitou entre Guelfos e Gibelinos? Guelfos, que se alinhavam ao clero, aos papas e à liberdade das cidades e os Gibelinos, que se alinhavam ao Imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
Aqui inicia o Visconde uma análise pessoal de Dante Alighieri. Dante havia sido guelfo à frente da magistratura em Florença. Mas, uma divisão interna entre Guelfos Brancos e Guelfos Negros provocaram disputas e discórdias que não permitiram reconciliações. Depois de ter sido expulso de Florença, Donato Corsi, inimigo mortal de Dante Alighieri, retorna sob a proteção do papa Bonifácio VIII e de Carlos di Valois, filho de Felipe III, da França, este, para servir de pacificador entre Guelfos Brancos e Negros e reprimir as lutas entre as facções. Carlos di Valois, atendendo aos pedidos secretos do pontífice, reprime severamente o partido dos Brancos com uma longa série de exílios, assassinatos, confiscos e incêndios, favorecendo assim o triunfo dos Guelfos Negros. Tal violência acaba envolvendo também Dante Alighieri que, várias vezes, manifestou-se com muita dureza nos órgãos municipais contra a presença de Carlos de Valois em Florença.
Dante Alighieri, da mesma forma, seria expulso de Florença e passaria o resto de sua vida exilado de sua cidade, mas o seu rancor com o clero papal acaba por transforma-lo em um Gibelino, inimigo figadal dos papas.
O Visconde traz à lembrança que, “as feridas no coração do poeta Dante Alighieri gotejavam dor e sangue” e ao escrever sua obra prima durante os doze primeiros anos do seu banimento de Florença, elas se abriam a todo instante. E questiona veementemente, o Visconde, analista literário: “Devemo-nos, pois, admirar de ver o seu ressentimento em versos cheios de força e furor?”
Continua com bastante ênfase, que o tema escolhido por Dante Alighieri o deixava bastante à vontade para saciar a sua própria vingança. Seus inimigos o exilaram de sua pátria, ele também os exilará da pátria celeste e os mergulhará em lagos de fogo no inferno. O alvo se volta sem piedade para coroas reais, mitra episcopal, chapéu de cardeal, tiara sagrada de sumo pontífice. Para Dante, toda a Itália não é aos seus olhos “senão uma morada de dor, um navio sem piloto”, não é mais a rainha do mundo, “mas sim uma vil escrava, um lugar de crápulas e prostituição”:
Ahi, serva Italia, di dolore ostello,
(Ai, serva Itália, da dor albergue)
Nave senza nocchiero in gran tempesta,
(Navio sem timoneiro, na grande tempestade)
Non Donna di province, ma bordello.
(Não mulher da província, mas de bordel)
Purgatório Canto VI
O Visconde de Inhomirim afirma que a audácia de Dante Alighieri cresce à medida que se expõe a maiores perigos, e sobe ao cúmulo quando chega às ordens religiosas, aos papas e seus ministros. Amontoando no inferno papa sobre papa, fez de todos uma coleção perpendicular com a cabeça para baixo e os pés para cima.
Dante Alighieri reserva ao seu perseguidor, o papa Bonifácio VIII, todos os raios possíveis da vingança, descrevendo-o com as tintas mais negras retiradas do fel da amargura encravada nos recônditos da alma.
No inferno de Dante podem-se encontrar as mais variadas punições. Os preguiçosos e indolentes que, nem bem, nem mal fizeram, são condenados a correr incessantemente. Os heréticos estão estendidos em sepulcros ardentes de um vasto cemitério. Os suicidas, encerrados dentro de vegetais, são os hamadríadas; as ninfas dos bosques que na mitologia nasciam encerradas dentro de uma árvore, não reassumirão seus corpos no dia da ressureição, por que não seria justo que lhe restituíssem o que voluntariamente renegaram. (Inferno Canto XIII)
Assim narra, o Visconde:
“Os blasfemadores estão deitados em supinação sob as chamas que os envolvem! Os fogos de Sodoma caem em chuva sobre seus habitantes, e sobre os que lhes imitaram os costumes perversos. Os sedutores de mulheres são fustigados e cozidos em um lago de fogo, onde os demônios os viram, à semelhança de um cozinheiro experimentado que revolve à carne.” (Inferno Canto XXI)
Serpentes dilaceram os salteadores e assassinos, e os fazem passar pelas mais singulares metamorfoses. Enfim, um rio gelado é destinado aos traidores da pátria, seus parentes e benfeitores. (Inferno Canto XXXII)
Torres Homem chama a atenção para este canto XXXII, onde Dante, que conhecia como ninguém o som das palavras, busca versos roucos, duros, e receando que a língua italiana não lhe forneça os sons que deseja recorre ao expediente de endurecer o estilo, emprestando do alemão sons como: (1) Danoia in Ostericchi (rio Danúbio na Áustria), (2) Tambernicchi (nome antigo do Monte Tambura, na Toscana), (3) Pietrapana (nome antigo do monte Pania de la Croce, na província de Luca, na Toscana), (4) borda cricchi (Se essas montanhas, tivessem caído no lago de gelo, não teriam craquelado as camadas da borda).
“Non fece al corso suo sì grosso velo
(Não fez seu curso tão espesso véu)
Di verno la Danoia in Ostericchi (1)
(No inverno o Danúbio na Áustria)
Nè ’l Tanai tà sotto ’l freddo cielo,
(Nem o Tanai sob o céu frio)
Com’ era quivi: che se Tambernicchi (2)
(Como lá estava: que o Monte Tambura
Vi fosse su caduto, o Pietrapana (3)
Lhe tivesse caído sobre o Pietrapana
Non avria pur dall’orlo fatto cricchi (4)”.
(Não teria as bordas feito rachar)
Conclui Francisco de Sales Torres Homem, o Visconde Inhomirim, dizendo que a grande arte de Dante Alighieri está na maneira como ele combina sons, palavras e imagens. Talento poético que proporciona imagens encantadoras e singelas.
Como exemplo o Visconde toma os versos do Canto XXIII do Paraíso, que descreve a imagem do pássaro vigilante que, durante a escuridão da noite, repousa com seus filhos em um ninho oculto na espessura das folhagens, cuidando das suas crias implumes à espera de um novo dia.
Este canto é uma das imagens de Dante Alighieri mais citadas pelos críticos, no sentido de definir a pureza do amor divino, caridoso, esperançoso e triunfante nos cuidados pelos seus filhos. Impossível não se enternecer com os versos deste canto:
Come l’augello intra l’amate fronde
(Com o pássaro entre amados ramos)
Posato al nido de’ suoi dolci nati,
(Pousado no ninho com seus doces rebentos)
La notte, che le cose ci nasconde,
(A noite, que as coisas nos escondem)
Che per veder gli aspetti desiati.
(Que ao ver os aspectos desejados).
E per trovar lo cibo onde li pasca.
(E encontrar comida para alimentá-los)
In che gravi labori li son grati,
(Em sérios trabalhos lhe são gratos),
Previene ’l tempo in su l’aperta frasca,
(Calcula o tempo em seu ramo saltitante),
E con ardente affetto il Sole aspetta,
(E, com ardente afeto, o sol espera),
Fiso guardando pur che l’alba nasca;
(Vigiando constantemente o nascer da alvorada).
Campinas, 11 de março de 2021.
Genaro Campoy Scriptore
Diretor – 1.o Tesoureiro do Centro de Ciências, Letras e Artes
(por ocasião dos 700 anos da morte de Dante Alighieri)